Não há empoderamento feminino sem autonomia corporal

Save Print

March 17, 2022 5:20 pm EDT

Por Andrea Ciolette, diretora de Saúde Feminina da Organon

É preciso falar sobre autonomia corporal das mulheres. Apesar do avanço na luta por espaços na sociedade e da ocupação de posições cada vez mais relevantes, ainda há muito o que caminhar. Por exemplo, nos cuidados com a saúde. Uma sociedade estruturada em pilares machistas e patriarcais induz a mulher a colocar seus cuidados pessoais em segundo plano, seja na atenção à saúde ou mesmo em seu planejamento reprodutivo. Essencialmente, ela perde o direito a fazer suas escolhas.

Não é possível naturalizar um cenário como este. Mulheres saudáveis são a espinha dorsal de uma sociedade próspera, estável e resiliente. No entanto, não é de hoje que elas são levadas a negligenciar cuidados com a saúde e o bem-estar por causa de uma estrutura social que delimitou funções de acordo com o gênero, cabendo à mulher os cuidados com casa e filhos.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), referentes a 2019, já mostram que, mesmo trabalhando fora de casa, as mulheres dedicam oito horas a mais do que os homens a atividades domésticas, principalmente no cuidado com os filhos. O mesmo ocorre nos afazeres do lar, que também consomem oito horas a mais do público feminino: mais tarefas, menos tempo para cuidar da saúde.

Com a pandemia, a situação se agravou. Aumentou a sobrecarga nas funções domésticas e no cuidado com os familiares, enquanto o trabalho remoto ampliou o tempo consumido pela vida profissional. De acordo com um relatório publicado pela Organização das Nações Unidas Mulheres, em 2021, 92% das mulheres consultadas consideraram que o tempo dedicado aos filhos aumentou muito e 85% delas teve a mesma percepção em relação às tarefas rotineiras do lar. Além de um esgotamento emocional, essa situação também gerou um abandono nos cuidados de saúde. Nesta mesma pesquisa, 64% das mães admitem que o tempo dedicado ao autocuidado diminuiu muito.

O descuido de si em prol dos outros vem cobrando um preço alto. No último ano, o número de mamografias realizadas no Brasil caiu 26% em relação a 2019, ano pré-pandemia1. Apesar de o cenário de 2020 ter sido pior, não há motivos para comemorar. O exame é essencial para detecção e prevenção do câncer de mama, que é o tipo de câncer que causa mais mortes na população feminina brasileira.

Além dos prejuízos à saúde física e mental, a pandemia também evidenciou que os movimentos pela autonomia e empoderamento feminino ainda não foram suficientes para diminuir a exposição das mulheres ao assédio sexual e à violência doméstica. Ter protagonismo em relação ao seu próprio corpo é para poucas.

No mundo, de acordo com o documento “Meu Corpo Me Pertence”, da UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas), quase metade das mulheres (45%) não têm autonomia sobre seu corpo. Isso significa dizer que elas não têm o poder de decidir quando procurar atendimento de saúde, mesmo os serviços de saúde sexual e reprodutiva, para receber orientação sobre o uso de métodos contraceptivos. Tampouco são ouvidas pelos maridos e parceiros quando dizem não às relações sexuais.

O resultado não poderia ser diferente. Um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres é a gravidez não planejada. Para ficar no exemplo do Brasil, pesquisas indicam que mais de 55% das gestações não são planejadas2. A estatística inclui casos de mulheres que não queriam engravidar ou que gostariam de ter esperado por mais tempo para isso. Falta-lhes muitas vezes conhecimento e acesso a métodos contraceptivos, principalmente entre as brasileiras com mais dificuldades econômicas. Entre as adolescentes esse número é ainda maior: 66% das que engravidam não tiveram a intenção3.

As brasileiras têm, em grande medida, a compreensão de que a gravidez não planejada representa um obstáculo para seu crescimento pessoal. Um levantamento da B2Mamy a pedido da Organon mostra que as mulheres das classes C e D entendem que a gravidez não planejada cria dificuldades para que elas rompam o ciclo da pobreza. Ter um filho sem o devido planejamento compromete, em muitos casos, a possibilidade de ela continuar os estudos e conseguir melhores trabalhos.

O empoderamento feminino só se fará completo quando a mulher puder tomar, de fato, todas as decisões relativas ao seu corpo: dos cuidados com saúde ao planejamento reprodutivo, ainda tão pouco difundido e adotado no Brasil.

Permitir que a mulher possa conduzir sua vida de forma mais independente e próspera depende do acesso à informação, a tratamentos e orientações médicas, ou mesmo a métodos contraceptivos. Mas também do apoio da família, do parceiro ou da parceira, assim como das instituições públicas e privadas. É uma tarefa coletiva e urgente.

Referências

  1. Fonte: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)  https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1328-realizacao-de-mamografias-cresce-25-em-2021-mas-ainda-esta-abaixo-dos-patamares-pre-pandemia
  2. Dados da pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz que ouviu 24 mil mulheres entre 2011 e 2012
  3. Fonte: Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)  https://www.febrasgo.org.br/pt/noticias/item/1210-reflexoes-sobre-a-semana-nacional-de-prevencao-da-